A partir de uma seleção de obras que ultrapassam o limite do privado, questionam sua separação do público e, principalmente, investigam as subjetividades dentro da cidade, apresenta-se uma analise da prática de deriva de Sophie Calle, uma deriva que segue não a psicogeografia da artista, mas sim a cidade subjetiva do outro, propondo-se a conhecer a cidade a partir destes passos.
A análise foi apresentada como trabalho final em uma disciplina que cursei no primeiro semestre de 2020, com conteúdo relacionado ao caminhar como prática estética. As obras analisadas foram: Suite Vénietienne (1980), The Shadow (1981), Twenty Years Later (2001), The Bronx (1980), Gotham Handbook (2004), The Eruv Of Jerusalem (1996), The Detachment (1996), Exquisite Pain (1984-2003), Room With A View (2002).
Sophie Calle viajou por pelo menos oito anos antes de retornar à Paris e iniciar sua carreira artística. Aos 18 anos começou suas viagens por conta de sua militância política, quando partiu para o Líbano. Aos 26, retornou para Paris, tendo passado por Estados Unidos, México, Grécia e Canadá. Ao longo do tempo, as viagens não tinham mais um motivo político: em entrevista a Christine Macel, Calle relatou que suas ações foram muito influenciadas por suas relações amorosas com homens: estava sempre partindo, seja para ficar com eles ou para deixá-los, e seu envolvimento com grupos políticos começou também por conta de suas relações. Tanto suas viagens quanto sua afetação por relacionamentos e envolvimento com assuntos que aparecem por acaso trazem à tona as temáticas recorrentes no trabalho de Sophie, assim como a essência destes.
Calle é frequentemente lembrada como uma artista ritualística, não por um caráter místico, mas por sua forma de realizar os trabalhos, uma forma processual com regras e métodos. Trabalhos como “The Birthday Ceremony” (1980 – 1993) e “Chromatic Diet” (1997) são exemplos do processo desenvolvido por Sophie: iniciar uma rotina quase que cerimonial e se entregar a ela de maneira íntima, de forma que se chegue a um resultado inesperado ao fim da realização do trabalho. A preposição de uma regra não é uma limitação, mas uma possibilidade de se libertar: seguir uma instrução, feita por ela mesma, para tatear um assunto.
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| Chromatic Diet, 1997. Sophie segue a dieta cromática da personagem Maria, de Leviathan (Paul Auster) para se aproximar da personagem que foi inspirada nela. |
“Gosto de estar no controle e gosto de perder o controle. Obedecer a um ritual é uma maneira de criar as regras e se deixar levar por elas.” Sophie Calle em entrevista a Christine Macel.
A DERIVA COMO UM JOGO
As derivas de Sophie Calle funcionam como jogos propostos por ela mesma. Ao retornar para Paris e começar sua prática com a fotografia, Calle sentiu-se fora da realidade da cidade. Começa, então, a seguir estranhos na rua para fotografar assuntos que a interessavam, tanto para encontrar uma atividade que lhe valesse a pena quanto para praticar fotografia. Em “A Teoria da Deriva”, Debord fala sobre a possibilidade de desorientação pessoal na deriva, uma possibilidade para além da busca do urbanismo psicogeográfico. Para Sophie Calle, a desorientação pessoal foi o ponto de partida para suas derivas, de forma “flaneurística”. Debord também descreve uma “estreiteza em Paris, em que se vive cada indivíduo...”. Sophie se propõe conhecer a estreiteza de diferentes indivíduos, por não se contentar com a sua própria. A estreiteza que Debord critica, por esta ser resultado de uma sociedade de consumo e produção, longe da liberdade e construção de uma cidade ideal, instiga Sophie Calle. Para Calle, conhecer cada subjetividade é uma forma de ter domínio dentro de um jogo e de perder o domínio dentro da forma burguesa tradicional, o que funciona como uma saída dessa configuração de cidade que não faz sentido para ela. Configura-se como uma fuga individual da sociedade que Debord critica, e que Sophie criticou também quando jovem, ainda militante política, o que pode ter influenciado em sua visão descrente sobre a vida cotidiana do mundo capitalista.
Foi buscando a subjetividade alheia dentro da cidade que Calle realizou a deriva que a revelou para o mundo da arte. “Suite Vènitienne” (1980) parte do jogo de seguir um homem que a interessou durante um dia e que, por acaso, na mesma noite, acabou sendo apresentado a ela. Calle não mede esforços para seguir os passos do homem e, ao se conhecerem brevemente, ele a conta casualmente que estaria partindo para Veneza dentro de alguns dias. Sophie secretamente se propôs a seguir esse homem, fotografando seus rastros e tomando notas investigativas em seu caderno. É notável uma caracteristica que se perpetua em seu trabalho: a preocupação com a afeição do indíviduo pela cidade, a exemplo do momento em que ela se perde do homem que ela nos apresenta como Henri B., se lembra das poucas palavras que trocou com ele e do fato dele gostar de cemitérios, e decide procura-lo em um.
“Assim, o modo de vida pouco coerente, e inclusive com certas brincadeiras consideradas de mau gosto, que tem sido sempre censurada em nosso ambiente, [...] revelaria um sentimento que seria a deriva ou não seria nada. O que se pode escrever só serve como produto deste grande jogo.” Guy Debord. Teoria da deriva.
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Suite Vénitienne, 1980 |
Constant Nieuwenhuys.menciona a auto-exclusão, perambulação e violência de grupos de contracultura como uma frustração com os limites impostos por uma sociedade voltada para o trabalho, dizendo que esses grupos formariam a New Babylon, uma construção de cidade anti-capitalista. Calle não fez parte de grupos durante sua vida, com exceção de militâncias políticas, mas é possível observar uma rebeldia para com a sociedade produtiva que ela nunca se enxergou parte de, sempre se entregando à deriva. A deriva faz parte da história de Sophie e foi a partir desta que ela encontrou a fotografia.
“Uma ou várias pessoas que se lançam à deriva renunciam, durante um tempo mais ou menos longo, os motivos para deslocar-se ou atuar normalmente em suas relações, trabalhos e entretenimentos próprios de si, para deixar-se levar pelas solicitações do terreno e os encontros que a ele corresponde.” Guy Debord, Teoria da Deriva.
Ao começar suas derivas em Paris e perseguir diferentes anônimos, Sophie Calle se deixa levar não pelo terreno, como proposto por Debord em “Teoria da Deriva”, mas pelo habitante, este que caminha pela memória afetiva (“The Eruv of Jerusalem”, “The Bronx”) – ou por suas relações cotidianas de deslocamento (“Suite Vénitienne”). A deriva de Calle decerto não se relaciona com a psicogeografia, mas sim com a subjetividade do outro que a guia e é a linha que puxa o jogo. Ao se relacionar com suas derivas-jogos, Sophie Calle segue a regra proposta por ela, mas está é uma regra elástica que pode envolver um segundo elemento que tem suas próprias regras.



