24 de agosto de 2020

Sophie Calle, as cidades e as subjetividades

Em 1981, Calle pede que sua mãe contrate um detetive para segui-la por um dia, registrando sua existência – uma inversão ao que ela vinha fazendo desde 1978. Ela toma suas notas, enquanto o detetive registra seu caminhar. O trajeto escolhido por ela é pessoal, um passeio com o detetive, à sua forma, indo para locais que tenham significado afetivo para ela. Sophie caminha se perguntando se o detetive está se divertindo ou gostando dela. Esse trabalho é batizado de “The Shadow” e, vinte anos depois, Sophie Calle reproduz o mesmo jogo em “Twenty Years Later” (2001) – dessa vez, ela relata em suas notas que não seguia alguém há vinte anos.

The Shadown, 1981
 Nesses dois trabalhos, Sophie faz uma inversão de investigação da subjetividade. Por dois anos, ela seguiu estranhos na rua, investigando a cidade a partir do outro. Em “The Shadow”, ela passa a investigar a cidade partir de si mesma, convidando o outro a conhecer sua subjetividade. Seu desejo é registrar com fotografias sua existência: uma forma de prolongar uma vida, a fotografia é um registro de memória póstuma. A relação que ela cria com o investigador é íntima, para ela, mas na realidade é uma relação monetária: sua mãe pagou pelo investigador (“The Shadow”) e, posteriormente (“Twenty Years Later”), um amigo. A disparidade das relações é perceptível ao analisar os relatórios: de um lado, Sophie faz um trajeto pensando no detetive, em apresentá-lo pontos importantes para sua vida. Os relatórios do detetive, entretanto, são investigativos e objetivos: refere-se à Sophie Calle, na maioria das vezes, como “Senhorita Calle” ou “assunto”, descrevendo objetivamente suas ações e horários realizados, sem entrar em qualquer detalhe afetivo.

“Exquisite Pain” (1984-2003) é outro trabalho em que Sophie busca conhecer sua própria subjetividade na cidade - dessa vez, em uma cidade exterior. Ao conseguir uma bolsa do Governo Francês, Calle viaja para o Japão e fotografa as cidades. No meio da viagem, seu relacionamento amoroso chega ao fim e, ao retornar, tudo em relação a viagem parece existir em volta desse fato. Calle descreve sua decisão de exorcizar sua dor e conversar com amigos, perguntando a eles: “Quando você mais sofreu?”. A troca de dores terminaria quando sua história morresse ou tivesse sido extremamente relativizada. O processo durou três meses e, quinze anos depois, ela retornou às fotografias e as carimbou com uma contagem de dias em relação ao fim do relacionamento. Os registros fotográficos recebem intervenções com uma significação interna da artista: conhecer as cidades japonesas só existe com a memória afetiva que envolveu o momento, e somente poderiam ser expostas assim.

 
Exquisite Pain, livro de artista

Relacionar-se intimamente com a cidade e atentar-se com sua própria subjetividade neste lugar aproxima o individuo de criar uma relação pessoal com um ponto da cidade, mesmo que este ponto seja público. Sophie Calle volta a este tema algumas vezes em sua obra, sendo notável a exploração disso em “Gotham Handbook” (1994), trabalho realizado em colaboração com Paul Auster. Auster, consagrado escritor norte americano, baseou Maria, uma de suas personagens do livro “Leviatã”, em Calle. Se sentindo em débito, Sophie Calle pediu a Auster que ele escrevesse uma personagem fictícia para que ela simulasse, fazendo o papel inverso: ao invés de inspirar uma personagem, ser inspirada por ela. Em troca, Paul Auster escreveu instruções que Calle deveria seguir na cidade de Nova Iorque (“Instruções Pessoais a SC Sobre Como Melhorar a Vida na Cidade de Nova Iorque). As instruções dadas por Auster relacionam-se com a vida urbana e solicitam ações bem humoradas de Sophie Calle, como sorrir e conversar com estranhos. Uma das instruções indica a necessidade de cultivar um espaço, um ponto da cidade. Sophie escolhe uma cabine telefônica, decorando-a a seu gosto e cultivando como seu ponto. Cultivar o ponto público torna material a relação intima do individuo com a cidade. Na cabine, Sophie deixa um papel, instruindo pessoas a escreverem comentários, reclamações ou sugestões – e recebe diferentes reações, desde as mais mal educadas até as mais carinhosas, mas sempre com olhares de estranhamento – como se os transeuntes não estivessem acostumados com a proposta de “melhoria de vida na cidade” de Paul Auster, seguida por Sophie Calle. A proposta mais que mais causa estranhamento é a mais radical no que diz respeito à apropriar-se da cidade: cultivar um espaço de maneira singular, subjetiva e pessoal. 

Gotham Handbook e a cabine cultivada por Sophie, 1994.
 

Nas cidades, tudo é uniforme, os pontos facilmente se tornam “não-lugares” (Augé). Cultivar um marco é transformar um não-lugar em um lugar, é transformá-lo num local identitário. Sophie estabelece uma relação íntima com o ponto de uma cidade onde ela é turista, a partir de instruções de uma personagem escrita para ela e alterando a relação dos transeuntes com aquele ponto cultivado com ela. Existe ainda a ilegalidade na cultivação de um ponto público: não seriam as intervenções urbanas uma forma de cultivar o espaço? Sophie pinta o chão de verde e coloca flores na cabine (uma aparente brincadeira com o cultivo de plantas e o cultivo do local). Ao pintar o chão com tinta em spray verde, pode-se interpretar uma pichação – o que leva ao questionamento sobre as relações que os pixadores criam com seus pontos, uma forma de cultivar seus próprios lugares na cidade e um ponto que já esteve presente em um de seus trabalhos (“The Bronx”), acidentalmente, como será abordado mais à frente.