24 de agosto de 2020

Sophie Calle, antiturista

Em The Eruv of Jerusalem (1996), Calle faz um estudo sobre o público e o privado a partir do Shabbat e dos habitantes de Jerusalem. Eruv é o descanso sagrado é obrigatório no Shabbat, de acordo com a lei Judaica. Trabalhar é proibido nesse dia, assim como carregar objeto privados para fora do lar. Entretanto, um espaço cercado por muros e portões é considerado um espaço privado, mesmo que seja uma cidade, o que permite o trânsito nesta com objetos pessoais e privados e tornaria o espaço publico um espaço privado. Dentro dessas informações, Calle pede que habitantes de Jerusalém – Israelitas e Palestinos – a levem a um espaço público que alcançam uma dimensão privada para cada um deles. Neste trabalho, Sophie não apenas conhece Jerusalém a partir da subjetividade do outro, mas trabalha com a questão no contexto geopolítico de Jerusalém. 

The Eruv of Jerusalem, 1996.


Esse estudo sobre relações privadas dos indivíduos com espaços públicos modificadas por políticas externas está presente também em Detachment (1996). O jogo proposto nesse trabalho foi realizar visitas a símbolos da Alemanha Oriental em Berlim, quando Sophie pede que transeuntes descrevam os monumentos que estavam nesses locais que então já eram vazios. Calle fotografa esses locais e traz a eles o significado particular do entrevistado, em contrapartida ao significado inicial da imagem que existe na memória destes, expondo os trabalhos com as histórias e publicando livros, como é de sua tradição. O local público novamente ganha um significado subjetivo, ao qual Sophie traz maior atenção e importância. Os monumentos foram removidos após a queda do Muro de Berlim, por motivações políticas, mas o envolvimento das pessoas com estes símbolos era pessoal, queira fosse um envolvimento positivo ou negativo. Sophie busca resgatar a relação que os habitantes têm com essa cidade e com suas mudanças.

Detachment, 1996.


Um terceiro trabalho que segue premissa de investigar a relação dos indivíduos com os espaços públicos é The Bronx (1980). A Fashion Moda Gallery, de Nova Iorque, convida Sophie Calle para desenvolver um projeto que se conecte com o distrito onde fica a galeria (Bronx). Para a artista, algo que se conecte com o distrito deve partir das pessoas que vivem lá e, por isso, ela pede que transeuntes a levem para um ponto da escolha deles enquanto ela os escuta, fotografa esses pontos e toma notas de suas histórias. Uma noite antes da exposição, a galeria foi invadida e as obras sofreram intervenções. As pixações por cima das obras, feitas provavelmente pelos moradores da região, estabelecem também uma conexão do trabalho com o distrito, pois são uma forma de cultivar e identificar o local com o distrito e seus moradores – não é uma questão qualitativa ou um olhar do estrangeiro sobre o local, mas uma escolha feita por quem adentrou a galeria e fez as intervenções.
 

The Bronx, 1980

 Em “Restauração da Cidade Subjetiva”, Félix Guatarri fala sobre o turista que viaja, mas não deriva, realizando viagens imóveis. O turista é aquele que anda em tour, em círculos pré-definidos, sem estabelecer uma relação com a caminhada ou com o destino final. Guatarri afirma que “o ser humano contemporâneo é fundamentalmente desterritorializado” e questiona se os homens podem reestabelecer relações intimas e subjetivas com suas terras natais. Sophie Calle, por sua vez, é uma antiturista, uma errante dentro de sua própria cidade ou de qualquer cidade que ela se propõe a conhecer, buscando essa relação íntima do ser com sua terra natal e buscando sua própria relação com sua própria terra.

“Room With a View” (2002) relaciona-se intimamente com o turismo. No dia 5 de Outubro, ela tem um quarto arrumado para ela no topo da torre, onde ela poderá dormir. Ao longo da noite, transeuntes vão ao seu quarto e lhe contam histórias, a seu pedido. Nesse processo, Sophie inverte a relação do turista com o ponto turístico: enquanto ela dorme em um ponto tão público da cidade, tornando-o um pouco particular, ela escuta histórias de turistas, que fazem viagens para contar histórias. A artista estar no ponto símbolo da cidade ouvindo histórias dos turistas cria uma relação de uma cidade querendo conhecer o turista, diferenciando-se do contrário tradicional, enquanto Sophie desenvolve sua relação própria e particular com um dos pontos mais públicos da cidade de Paris. 

Room With a View, 2002

Sophie Calle, as cidades e as subjetividades

Em 1981, Calle pede que sua mãe contrate um detetive para segui-la por um dia, registrando sua existência – uma inversão ao que ela vinha fazendo desde 1978. Ela toma suas notas, enquanto o detetive registra seu caminhar. O trajeto escolhido por ela é pessoal, um passeio com o detetive, à sua forma, indo para locais que tenham significado afetivo para ela. Sophie caminha se perguntando se o detetive está se divertindo ou gostando dela. Esse trabalho é batizado de “The Shadow” e, vinte anos depois, Sophie Calle reproduz o mesmo jogo em “Twenty Years Later” (2001) – dessa vez, ela relata em suas notas que não seguia alguém há vinte anos.

The Shadown, 1981
 Nesses dois trabalhos, Sophie faz uma inversão de investigação da subjetividade. Por dois anos, ela seguiu estranhos na rua, investigando a cidade a partir do outro. Em “The Shadow”, ela passa a investigar a cidade partir de si mesma, convidando o outro a conhecer sua subjetividade. Seu desejo é registrar com fotografias sua existência: uma forma de prolongar uma vida, a fotografia é um registro de memória póstuma. A relação que ela cria com o investigador é íntima, para ela, mas na realidade é uma relação monetária: sua mãe pagou pelo investigador (“The Shadow”) e, posteriormente (“Twenty Years Later”), um amigo. A disparidade das relações é perceptível ao analisar os relatórios: de um lado, Sophie faz um trajeto pensando no detetive, em apresentá-lo pontos importantes para sua vida. Os relatórios do detetive, entretanto, são investigativos e objetivos: refere-se à Sophie Calle, na maioria das vezes, como “Senhorita Calle” ou “assunto”, descrevendo objetivamente suas ações e horários realizados, sem entrar em qualquer detalhe afetivo.

“Exquisite Pain” (1984-2003) é outro trabalho em que Sophie busca conhecer sua própria subjetividade na cidade - dessa vez, em uma cidade exterior. Ao conseguir uma bolsa do Governo Francês, Calle viaja para o Japão e fotografa as cidades. No meio da viagem, seu relacionamento amoroso chega ao fim e, ao retornar, tudo em relação a viagem parece existir em volta desse fato. Calle descreve sua decisão de exorcizar sua dor e conversar com amigos, perguntando a eles: “Quando você mais sofreu?”. A troca de dores terminaria quando sua história morresse ou tivesse sido extremamente relativizada. O processo durou três meses e, quinze anos depois, ela retornou às fotografias e as carimbou com uma contagem de dias em relação ao fim do relacionamento. Os registros fotográficos recebem intervenções com uma significação interna da artista: conhecer as cidades japonesas só existe com a memória afetiva que envolveu o momento, e somente poderiam ser expostas assim.

 
Exquisite Pain, livro de artista

Relacionar-se intimamente com a cidade e atentar-se com sua própria subjetividade neste lugar aproxima o individuo de criar uma relação pessoal com um ponto da cidade, mesmo que este ponto seja público. Sophie Calle volta a este tema algumas vezes em sua obra, sendo notável a exploração disso em “Gotham Handbook” (1994), trabalho realizado em colaboração com Paul Auster. Auster, consagrado escritor norte americano, baseou Maria, uma de suas personagens do livro “Leviatã”, em Calle. Se sentindo em débito, Sophie Calle pediu a Auster que ele escrevesse uma personagem fictícia para que ela simulasse, fazendo o papel inverso: ao invés de inspirar uma personagem, ser inspirada por ela. Em troca, Paul Auster escreveu instruções que Calle deveria seguir na cidade de Nova Iorque (“Instruções Pessoais a SC Sobre Como Melhorar a Vida na Cidade de Nova Iorque). As instruções dadas por Auster relacionam-se com a vida urbana e solicitam ações bem humoradas de Sophie Calle, como sorrir e conversar com estranhos. Uma das instruções indica a necessidade de cultivar um espaço, um ponto da cidade. Sophie escolhe uma cabine telefônica, decorando-a a seu gosto e cultivando como seu ponto. Cultivar o ponto público torna material a relação intima do individuo com a cidade. Na cabine, Sophie deixa um papel, instruindo pessoas a escreverem comentários, reclamações ou sugestões – e recebe diferentes reações, desde as mais mal educadas até as mais carinhosas, mas sempre com olhares de estranhamento – como se os transeuntes não estivessem acostumados com a proposta de “melhoria de vida na cidade” de Paul Auster, seguida por Sophie Calle. A proposta mais que mais causa estranhamento é a mais radical no que diz respeito à apropriar-se da cidade: cultivar um espaço de maneira singular, subjetiva e pessoal. 

Gotham Handbook e a cabine cultivada por Sophie, 1994.
 

Nas cidades, tudo é uniforme, os pontos facilmente se tornam “não-lugares” (Augé). Cultivar um marco é transformar um não-lugar em um lugar, é transformá-lo num local identitário. Sophie estabelece uma relação íntima com o ponto de uma cidade onde ela é turista, a partir de instruções de uma personagem escrita para ela e alterando a relação dos transeuntes com aquele ponto cultivado com ela. Existe ainda a ilegalidade na cultivação de um ponto público: não seriam as intervenções urbanas uma forma de cultivar o espaço? Sophie pinta o chão de verde e coloca flores na cabine (uma aparente brincadeira com o cultivo de plantas e o cultivo do local). Ao pintar o chão com tinta em spray verde, pode-se interpretar uma pichação – o que leva ao questionamento sobre as relações que os pixadores criam com seus pontos, uma forma de cultivar seus próprios lugares na cidade e um ponto que já esteve presente em um de seus trabalhos (“The Bronx”), acidentalmente, como será abordado mais à frente.

Sophie Calle e a deriva como um jogo

A partir de uma seleção de obras que ultrapassam o limite do privado, questionam sua separação do público e, principalmente, investigam as subjetividades dentro da cidade, apresenta-se uma analise da prática de deriva de Sophie Calle, uma deriva que segue não a psicogeografia da artista, mas sim a cidade subjetiva do outro, propondo-se a conhecer a cidade a partir destes passos.

A análise foi apresentada como trabalho final em uma disciplina que cursei no primeiro semestre de 2020, com conteúdo relacionado ao caminhar como prática estética. As obras analisadas foram: Suite Vénietienne (1980), The Shadow (1981), Twenty Years Later (2001), The Bronx (1980), Gotham Handbook (2004), The Eruv Of Jerusalem (1996), The Detachment (1996), Exquisite Pain (1984-2003), Room With A View (2002).


Sophie Calle viajou por pelo menos oito anos antes de retornar à Paris e iniciar sua carreira artística. Aos 18 anos começou suas viagens por conta de sua militância política, quando partiu para o Líbano. Aos 26, retornou para Paris, tendo passado por Estados Unidos, México, Grécia e Canadá. Ao longo do tempo, as viagens não tinham mais um motivo político: em entrevista a Christine Macel, Calle relatou que suas ações foram muito influenciadas por suas relações amorosas com homens: estava sempre partindo, seja para ficar com eles ou para deixá-los, e seu envolvimento com grupos políticos começou também por conta de suas relações. Tanto suas viagens quanto sua afetação por relacionamentos e envolvimento com assuntos que aparecem por acaso trazem à tona as temáticas recorrentes no trabalho de Sophie, assim como a essência destes.

Calle é frequentemente lembrada como uma artista ritualística, não por um caráter místico, mas por sua forma de realizar os trabalhos, uma forma processual com regras e métodos. Trabalhos como “The Birthday Ceremony” (1980 – 1993) e “Chromatic Diet” (1997) são exemplos do processo desenvolvido por Sophie: iniciar uma rotina quase que cerimonial e se entregar a ela de maneira íntima, de forma que se chegue a um resultado inesperado ao fim da realização do trabalho. A preposição de uma regra não é uma limitação, mas uma possibilidade de se libertar: seguir uma instrução, feita por ela mesma, para tatear um assunto. 

Chromatic Diet, 1997. Sophie segue a dieta cromática da personagem Maria, de Leviathan (Paul Auster) para se aproximar da personagem que foi inspirada nela.

Birthday Ceremony, 1980-93. Por treze anos, Sophie crecebeu o mesmo número de convidados da idade que estava completando nas noites de seus aniversários, recebendo também um estranho. Guardou os presentes como totens de afeto, sem desembrulha-los.


“Gosto de estar no controle e gosto de perder o controle. Obedecer a um ritual é uma maneira de criar as regras e se deixar levar por elas.” Sophie Calle em entrevista a Christine Macel.

 

A DERIVA COMO UM JOGO

As derivas de Sophie Calle funcionam como jogos propostos por ela mesma. Ao retornar para Paris e começar sua prática com a fotografia, Calle sentiu-se fora da realidade da cidade. Começa, então, a seguir estranhos na rua para fotografar assuntos que a interessavam, tanto para encontrar uma atividade que lhe valesse a pena quanto para praticar fotografia. Em “A Teoria da Deriva”, Debord fala sobre a possibilidade de desorientação pessoal na deriva, uma possibilidade para além da busca do urbanismo psicogeográfico. Para Sophie Calle, a desorientação pessoal foi o ponto de partida para suas derivas, de forma “flaneurística”. Debord também descreve uma “estreiteza em Paris, em que se vive cada indivíduo...”. Sophie se propõe conhecer a estreiteza de diferentes indivíduos, por não se contentar com a sua própria. A estreiteza que Debord critica, por esta ser resultado de uma sociedade de consumo e produção, longe da liberdade e construção de uma cidade ideal, instiga Sophie Calle. Para Calle, conhecer cada subjetividade é uma forma de ter domínio dentro de um jogo e de perder o domínio dentro da forma burguesa tradicional, o que funciona como uma saída dessa configuração de cidade que não faz sentido para ela. Configura-se como uma fuga individual da sociedade que Debord critica, e que Sophie criticou também quando jovem, ainda militante política, o que pode ter influenciado em sua visão descrente sobre a vida cotidiana do mundo capitalista. 

Foi buscando a subjetividade alheia dentro da cidade que Calle realizou a deriva que a revelou para o mundo da arte. “Suite Vènitienne” (1980) parte do jogo de seguir um homem que a interessou durante um dia e que, por acaso, na mesma noite, acabou sendo apresentado a ela. Calle não mede esforços para seguir os passos do homem e, ao se conhecerem brevemente, ele a conta casualmente que estaria partindo para Veneza dentro de alguns dias. Sophie secretamente se propôs a seguir esse homem, fotografando seus rastros e tomando notas investigativas em seu caderno. É notável uma caracteristica que se perpetua em seu trabalho: a preocupação com a afeição do indíviduo pela cidade, a exemplo do momento em que ela se perde do homem que ela nos apresenta como Henri B., se lembra das poucas palavras que trocou com ele e do fato dele gostar de cemitérios, e decide procura-lo em um.

“Assim, o modo de vida pouco coerente, e inclusive com certas brincadeiras consideradas de mau gosto, que tem sido sempre censurada em nosso ambiente, [...] revelaria um sentimento que seria a deriva ou não seria nada. O que se pode escrever só serve como produto deste grande jogo.” Guy Debord. Teoria da deriva.

Suite Vénitienne, 1980



Constant Nieuwenhuys.menciona a auto-exclusão, perambulação e violência de grupos de contracultura como uma frustração com os limites impostos por uma sociedade voltada para o trabalho, dizendo que esses grupos formariam a New Babylon, uma construção de cidade anti-capitalista. Calle não fez parte de grupos durante sua vida, com exceção de militâncias políticas, mas é possível observar uma rebeldia para com a sociedade produtiva que ela nunca se enxergou parte de, sempre se entregando à deriva. A deriva faz parte da história de Sophie e foi a partir desta que ela encontrou a fotografia.

“Uma ou várias pessoas que se lançam à deriva renunciam, durante um tempo mais ou menos longo, os motivos para deslocar-se ou atuar normalmente em suas relações, trabalhos e entretenimentos próprios de si, para deixar-se levar pelas solicitações do terreno e os encontros que a ele corresponde.” Guy Debord, Teoria da Deriva.


Ao começar suas derivas em Paris e perseguir diferentes anônimos, Sophie Calle se deixa levar não pelo terreno, como proposto por Debord em “Teoria da Deriva”, mas pelo habitante, este que caminha pela memória afetiva (“The Eruv of Jerusalem”, “The Bronx”) – ou por suas relações cotidianas de deslocamento (“Suite Vénitienne”). A deriva de Calle decerto não se relaciona com a psicogeografia, mas sim com a subjetividade do outro que a guia e é a linha que puxa o jogo. Ao se relacionar com suas derivas-jogos, Sophie Calle segue a regra proposta por ela, mas está é uma regra elástica que pode envolver um segundo elemento que tem suas próprias regras.