Aviso: O texto a seguir é um trecho de um trabalho submetido para a avaliação do Professor Doutor Marcio Donato Périgo, apresentado por mim, com reflexões sobre gravadares e sobre a história da gravura no Brasil. Você pode ler a segunda parte do texto aqui. A terceira parte, onde analisei quatro obras de diferentes artistas, será postada em breve.
Em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, Walter Benjamim apresenta a mudança de paradigma na arte a partir da possibilidade da reprodução técnica de uma obra. Segundo Benjamin, a obra de arte tem uma aura que é afetada pela reprodutibilidade técnica e, até o momento da consagração das técnicas de gravura e, principalmente da fotografia e do cinema, essa aura é magnetismo central das obras de arte que cumprem seus papéis quase que litúrgicos. A natureza reprodutível da gravura, a partir de uma leitura ocidentalizada, ocasiona numa mudança do paradigma da arte, de espiritual para político.
A partir daí, observo que, se a gravura já existia, à sua forma, na América pré-colonial, é importante perceber que o caráter era diferente do caráter da gravura que chega ao Brasil no período Imperial. A diferença de caráter não se dá unicamente e nem principalmente pelo aparato técnico ser diferenciado, mas pelos objetivos diferentes que existem entre a gravura indígena e a gravura imperial. Em sítios arqueológicos, foram encontradas gravações feitas em pedras, por erosão, utilizando-se pedras com pontas semelhantes aos atuais buris, sem a empenhadura. As gravuras indígenas, com matrizes e tintas naturais, relizavam gravuras corporais, As matrizes, buris e goivas utilizados pelos habitantes do território americano davam suporte para que as gravuras cumprissem um papel cerimonial, de impressão de grafismos em corpos a partir de matérias naturais. A Imprensa Régia é estabelecida em 1808, com a pretensão política de disseminação de informação sobre a nova sede da Família Real Portuguesa. De um lado, a arte com situação cerimonial, de outro, com situação política.
Em entrevista, Renina Katz diz que a gravura brasileira começa, na realidade, muito recentemente, em 1930. O que nasce antes, segundo Katz:
“[...]são desenhos executados por litógrafos na Europa, sendo uma documentação narrativa de hábitos e jeitos brasileiros.” – Renina Katz em entrevista a Radhá Abramo, Agosto de 2003.
Uma leitura da posição política que a arte toma a partir de sua reprodutibilidade é a de veiculação desta mesma arte, que passa a poder ser vista por um público maior e se emancipa de sua existência ritualística, agregando o valor de exposição em contrapartida ao seu anterior valor de culto – valores descritos por Benjamin em seu texto. Como bem destacado por Katz em 2003, a veiculação cria uma possibilidade de educação do olhar do público, um acesso maior à apropriação da linguagem visual. Apresenta-se também, com a reprodutibilidade técnica, a possibilidade da mudança de discurso da arte. Não é que a arte não possa ser ritualística, mas ela se emancipa disso como necessidade. Com a modernidade, pouco a pouco se torna possível para o artista que ele escolha o discurso de sua arte.
A escolha do artista pela gravura pode ser uma escolha política, intrinsecamente ligada a sua natureza de reprodução. Se a arte se coloca em um lugar exclusivo, a gravura tem, com suas propriedades muito particulares, o instinto de quebrar esse esforço de uma arte que se colocar num pedestal e num viés mercadológico. A arte é parte da cultura humana como uma necessidade de deixar a marca da experiência e da existência, seja em aspectos sociais, cerimoniais ou de experiências pessoais. A gravura e a reprodução têm o trajeto de facilitar o acesso a diversas experiências e informações.
A natureza da gravura pode ser vista também a partir da leitura de reprodução que tange ao cerimonial, como as gravuras indígenas que usavam matrizes em pinturas corporais que fazem parte de uma cerimônia religiosa, facilitando a reprodução dos grafismos para as cerimônias. Sendo assim, a arte mostra seu papel não apenas de circulação cotidiana, mas também espiritual, com o poder de tocar o humano em seu núcleo mais sensível e sentimental. Sendo espiritual, é mais universal e mais importante de ser democratizada. Dentro disso, entretanto, vale questionar se a arte que pontuei se colocar num lugar exclusivo não estaria em um papel cerimonial, também. Manter sua aura não pode ser lido como uma forma de perceber ou tentar resgatar uma relação ritualística e espiritual do artista e do espectador com a arte? É claro, sem esquecer-se que essa relação se coloca, sim, num lugar exclusivo que, por estratificações sociais, é socialmente restrito em função de classes.