4 de maio de 2020

Pensamentos sobre gravura, parte II: Discorrendo sobre a reprodutibilidade e o fazer artístico a partir de Renina Katz, Jacqueline Aronis e Evandro Carlos Jardim

Aviso: O texto a seguir é um trecho de um trabalho submetido para a avaliação do Professor Doutor Marcio Donato Périgo, apresentado por mim, com reflexões sobre gravadares e sobre a história da gravura no Brasil. Essa é a segunda parte do texto e você pode ler a primeira parte dele aqui, onde discorro sobre a reprodução e outros atributos da gravura. A terceira e última parte do texto será postada em breve, com análises de obras dos artistas comentados a seguir.

Diante da natureza da reprodutibilidade, me parece evidente que a gravura pode ter um forte impacto quando se encontra com a preocupação social. Renina Katz, na década de 50, retrata a situação dos trabalhadores cariocas, e não é apenas o tema do retrato que tem o poder de causar impacto, mas também a possibilidade de reprodução, repetidas vezes, que pode ser quase que panfletária se for do desejo do artista.

“A gravura dificilmente é decorativa no mau sentido. Ela não nasceu exatamente para ser um objeto de decoração, nasceu com outros propósitos, entre outros o da divulgação. [...] Na sua origem há um compromisso com a multiplicação. Isso também agrada-me muito. Não que a multiplicação seja democrática tão somente etc. Ela tem história de ser veículo, de abertura, de aperfeiçoamento das pessoas. Cria uma espécie de educação do olhar também. Enfim, faz com que alguém chegue a todo mundo de uma maneira igual.” – Renina Katz em entrevista a Radhá Abramo, Agosto de 2003.

Se tornou-se possível para o artista escolher seu próprio discurso, torna-se mais acessível para ele a possibilidade de apropriar-se da matéria e da reprodutibilidade. No meio da década, o trabalho de Katz passa do estudo social para o campo da abstração. Para Renina, foi um movimento natural de seu trajeto artístico – o assunto se esgotou. Nesse momento, continua se apropriando das possibilidades da técnica: fazendo experimentações com cor e transparência a partir das matrizes. A possibilidade de usar a mesma matriz diversas vezes apresenta a oportunidade de experimentar diferentes composições com uma mesma gravação Analisando as gravuras partindo desse ponto – o de apropriação da matéria para novas possibilidades plásticas, fazendo a escolha de aproveitar-se de outros atributos da gravura que não a reprodutibilidade –, me coloquei a observar os trabalhos de Jacqueline Aronis, que renuncia da reprodutibilidade e da seriação, produzindo muitas vezes gravuras com apenas uma cópia. É interessante refletir sobre o desinteresse da reprodutibilidade. Um dos motivos parece ser uma estratégia para afirmar a figura do artista e tornar exclusivo o trabalho deste, transformar a observação numa viagem única, que acaba se relacionado ao espaço e tempo de exposição do trabalho. Também é possível observar a exploração de outros atributos da gravura: não apenas da reprodução, mas seus procedimentos muito próprios. Cada técnica tem propriedades únicas, que podem revelar além do desenho do artista, fazendo parte de sua linguagem.

“Os procedimentos técnicos me inspiram e são um apoio enquanto executo a gravura. Meu imaginário requer que eu passe pelos procedimentos, entendidos como doadores de ritmos, de timbres. Os instrumentos de gravação oferecem resistências diferenciadas, eles são para mim portadores de sentimentos e percepções. Os tempos dos procedimentos também são os da produção da imagem. [...] A gravura é fundamental para mim porque ela apresenta inúmeras possibilidades na elaboração das imagens. Penso o ateliê como um lugar de encontro, de inspiração, e nele a gravura propõe uma prática complexa. É da confluência no complexo que decorre a reflexão. Por isso, vejo a gravura como reflexão e não como reprodução de imagens.” – Jacqueline Aronis

Por um lado, vale lembrar o valor de exposição que Benjamin observa que a gravura atribui a arte. Entretanto, observa-se, por outro lado, que esta negação pode trazer à tona a aura a que Benjamin se refere. Sendo este segundo o caso que se aplica, é uma estratégia que traz atenção para o procedimento. Reafirma a crença na arte pela arte e o cerimonial e espiritual do artista, mas pode acabar colocando este em um patamar, o artista solitário, em desencanto, aquele artista visto de maneira romântica.

"As gravuras de Jacqueline Aronis inscrevem-se neste quadro de negação da reprodutibilidade e seriação da imagem gravada. Mais: constituem-se numa estratégia estético-ideológica, contrária aos processos de popularização da imagem para afirmar o sujeito, o artista criador em sua viagem solitária e em desencantamento com o mundo, onde o trabalho se configura como um esforço de transposição para outros espaços, outras paisagens, buscando significado e transcendência para seu gesto, para a sua existência.” – Ivo Mesquita

Trazer atenção ao procedimento tem sua importância em florescer a idéia de que o artista faça parte de todo o processo da gravura. Evandro Carlos Jardim destaca, em entrevista ao Itaú Cultural, a importância para ele de fazer parte de todo o procedimento, desde a concepção do desenho até a impressão da estampa. É notável seu envolvimento com todo o método de realização do trabalho como parte de seu modus operandi. Jardim destaca sua preferência por fazer as impressões, que, como diz ele, está relacionado à possibilidade de tomar decisões muito particulares ligadas a essa etapa do trabalho. A impressão é levada a outra importância além do da reprodutibilidade – a importância da tomada de decisões sobre a figura. Não se exclui uma da outra, apenas demonstra a apropriação de diferentes atributos da gravura.

O pensamento do fazer de Evandro está ligado ao desenho de observação, que é uma ferramenta de estudo do mundo e, em Evandro, da atmosfera dos objetos, da realidade – uma atmosfera que não pode ser vista ou representada de nenhuma outra maneira além do desenho. Pensei sobre a aura, dessa vez não da obra de arte, mas do objeto observado e como ela é representada no trabalho do artista.

“A luz estende a matéria, e nós trabalhamos com a matéria. [...] Eu tenho esse enfrentamento com a matéria e a luz revela o enfrentamento e, revelando o enfrentamento, ela revela, também, ou desvela, melhor dizendo, as nossas intenções.”