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24 de maio de 2023
Lustrar os cristais
7 de maio de 2023
Aproximações entre Alberto Giacometti e Marcel Duchamp
Texto apresentado como avaliação para a disciplina História da Arte V, em 2021 (ou algo assim, já não lembro muito bem)
Entre 1931 e 1935, Alberto Giacometti integra o grupo Surrealista encabeçado por André Breton e produz trabalhos com o esforço de apagar rastros do fazer manual, fazendo com que pareçam objetos de projeção direta da mente para o mundo material. Envolvido com a experiência de trazer à realidade uma surrealidade por integrar a vida com uma experiência com a qual todos temos acesso de forma inconsciente, os objetos produzidos por Giacometti têm caráter rotineiro, por mais estranhos que possam realmente ser, aludindo à possibilidade de um instante na rotina poder engatilhar uma experiência surreal. Neste período, Giacometti apresenta objetos com o mesmo caráter que outros do mundo cotidiano, de maneira que o confronto do espectador com o trabalho possa despertar uma experiência tão sublime que traga a experiência surreal, como uma epifania.
O Objeto desagradável de 1931 carrega características mais semelhantes à experiência Surrealista do que ao trabalho posterior de Giacometti. Com dimensões de 15,1 x 47,8 x 11,7 cm, foi primeiramente concebido em gesso para sua produção em madeira, provavelmente pelas mãos de um marceneiro – o modus operandi do Giacometti surrealista que buscava separar a arte do ofício. Tem forma fálica e textura lisa, com uma de suas pontas com pequenos espinhos espalhados que dificultariam um deslizar livre e pequenas crateras na outra ponta. Por suas dimensões, o objeto não poderia ser segurado apenas com as palmas das mãos, necessitando de mais força do resto do corpo e causando uma relação corporal de total envolvimento com um objeto que alude a sentimentos ambíguos: a forma fálica primeiramente alude à um erotismo que logo se torna um incômodo quando percebe-se seu tamanho distoante de um falo comum e suas esferas que poderiam causar dor se existissem realmente na atividade sexual. Sua forma traz à tona discussões sobre erotismo e inibições seculares e o nome provocativo, assim como o tamanho do objeto, lembram do tabu social sobre o desejo erótico que é tão comum entre os seres humanos e socialmente colocado como desagradável ou necessário de ser discreto: o Objeto desagradável de Giacometti parece cumprir um dos objetivos do artista durante esse período: produzir trabalhos epifânicos que aludam, ao mesmo tempo, à dor e ao prazer, uma ambiguidade presente na formação e no pensamento do grupo Surrealista que está sempre discutindo duas realidades oposta e complementares: inconsciente e consciente, psicologia e sociedade, prazer e dor.
O Objet-dard de Marcel Duchamp, embora posterior (1951), carrega questões que dialogam com o Objeto desagradável de Giacometti, desde o nome até a forma. De dimensões menores, 7,8 x 19,7 x 9 cm, originalmente feito em gesso e posteriormente fundido em bronze, o trabalho tem também uma forma fálica, embora longe das representações tradicionais, com formato entortado que também se assemelha a de um osso animal pouco reconhecível. Tem declaradamente o mesmo caráter de objeto de Giacometti e flerta também com a ironia e com a ambiguidade. O objeto de Duchamp tem um nome que faz uma declaração oposta à de Giacometti: enquanto o trabalho de 1931 demonstra uma vontade de descarte do objeto (seja por parte do artista, do espectador ou da sociedade), Duchamp afirma o caráter artístico do objeto – este que, por si, é realmente um descarte, como será explicitado posteriormente. Objet-dard é um trocadilho com “objeto de arte”, assim como com a palavra “dard”, que sugere uma agressão masculina. O objeto poderia ser mundano se não fosse por uma aparência peculiar (quase um osso, quase um falo, quase qualquer outra coisa cilindríca). A ambiguidade no nome e a forma fálica do objeto questionam o lugar da sexualidade – especialmente a masculina – na sociedade: arte, agressão ou apenas um objeto? A concepção do trabalho traz uma anedota que inverte o mito da ciração de Eva a partir da costela de Adão: o objeto seria uma parte descartada da figura feminina do Etant Donnés, justamente abaixo de um dos seios desta. Paira a pergunta se o objeto de arte é a costela feminina ou o formato fálico masculino, assim como a surrealidade na ambiguidade do próprio objeto feminino-masculino.
Os objetos tanto de Giacometti quanto de Duchamp cumprem com o tradicional caráter dos objetos surrealistas de apresentar uma simbologia sexual sádica, imaginativa, provocativa e escandalosa, intensificando e aflorando sentimentos em quem olha os trabalhos numa experiência quase que hipnótica. Essa suspensão temporal-hipnótica dada por uma relação espectador-objeto difere do que ocorre nas esculturas surrealistas, como será demonstrado mais adiante.
Também de Duchamp, o objeto Calço de castidade (Coin de chasteté, 1954), em bronze e plástico, com 6,3 x 8,7 x 4,2 cm, alude também à sexualidade: a união de duas partes de cores e materiais diferentes, uma em bronze adentrando um em plástico rosa, um ato que traz satisfação voyeristica e o prazer de caber na palma de uma mão: domínio da sensação de prazer e do tabu scial do prazer erótico. Procura-se demonstrar aqui como o objeto satisfaz também por caber num ciclo narrativo com a Bola Suspensa (1930-31) de Giacometti, uma escultura em gesso, metal e corda com uma bola suspensa por um fio.
A bola tem uma fatia cortada e está encara um semi-círculo semelhante à fatia vazia da esfera, mas em tamanho desproporcionalmente grande. Se não fosse o tamanho e o fio que suspende a bola, esta cairia e satisfaria o ato sugerido: seria isto de forma dolorosa ou de forma prazerosa? A eterna tensão e questionamento pode ser sanada pela união do bronze com o plástico do Calço de Duchamp.
A Bola Suspensa é engaiolada, delimitando o espaço da escultura e a colocando num pedestal que nunca possibilitaria a existência de um jogo ou de um objeto neste trabalho. Em Bola Suspensa há a tensão sugerida em tantas outras obras surrealistas de Giacometti: o que aconteceria se a bola caísse, se a manivela da mão (La main prise, 1932) fosse acionada ou se um alfinete de metal não segurasse a gota alongada que aponta para o olho (Point to the eye, 1931-32)? Enquanto os objetos surrealistas traçam uma relação de tensão entre espectador e objeto num momento de epifânia, as esculturas demonstram, de forma menos afetiva e mais dissecativa, o que é um momento de tensão, o que é a surrealidade e a capacidade de manipular e observar de fora o tempo numa situação. A tensão que se sente com um objeto surrealista é a tensão que se vê numa escultura surrealista, ao menos quando se fala de Giacometti.
A delimitação espacial presente em Bola Suspensa e uma demonstração do momento certo está também no último trabalho de Duchamp, Étant doneés (1946-66), uma escultura de precisão ótica que embora ocupe um grande espaço tridimensional e tenha diferentes camadas para uma ilusão bidiomensional, o trabalho exige a observação de um ponto de vista pequeno e específico para que seja visto da forma que foi projetado: a delimitação espacial feita pelo artista é determinante para a experiência com a obra, da mesma forma que propõe Giacometti com suas gaiolas que começam no período Surrealista.
REFERÊNCIAS
FONDATION GIACOMETTI. Alberto Giacometti Database. Point to the eye. Disponível em: https://www.fondation-giacometti.fr/en/database
KRAUSS, Rosalind. Caminhos da escultura moderna. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1998.
LEENHARDT, Jacques. Duchamp: crítica da razão visual. Artepensamento. 1994. Disponível em: <https://artepensamento.com.br/item/duchamp-critica-da-razao-visual/ >
MICHELI, M. de. As vanguardas artísticas, São Paulo, Martins Fontes, 1991.
PENA, Anne. Relatório final de atividades – Pibic 2019/2020. Pesquisa: “A observação no trabalho de Alberto Giacometti”. 2020.
TATE MUSEUM. Wedge of Chastity. Disponível em: <https://www.tate.org.uk/art/artworks/duchamp-wedge-of-chastity-t07281>
TATE MUSEUM. Dart object. Disponível em: https://www.tate.org.uk/art/artworks/duchamp-dart-object-t07280