7 de maio de 2020

Pensamentos sobre a gravura, parte III: Uma extensão dos pensamentos, observando obras de Aronis, Jardim e Katz


Aviso: O texto a seguir é um trecho de um trabalho submetido para a avaliação do Professor Doutor Marcio Donato Périgo, apresentado por mim, com reflexões sobre gravadares e sobre a história da gravura no Brasil. Essa é a terceira e última parte do texto. Você pode ler a primeira parte aqui, onde discorro sobre a reprodução e outros atributos da gravura. Na segunda parte, que você pode ler aqui, falo brevemente sobre a reprodutibilidade e o fazer artístico partindo de alguns pensamentos de Evandro Carlos Jardim, Jacqueline Aronis e Renina Katz. 

Renina Katz
Favela (J/Tiragem)
Circa 1956
Xilogravura
27cm x 28cm
Acervo Banco Itaú
Renina Katz
Passeio Laranja (29/48)
Litografia
50.2cm x 70cm
Acervo Banco Itaú


























As duas obras refletem diferentes momentos do trabalho de Renina Katz: à esquerda, a xilogravura da série “Favela” representa o início da jornada de Katz com a gravura, quando a artista era, segundo ela mesma, uma jovem militante. Por vezes o período é lido como expressionista, mas Renina diz não enxergar desta forma, se colocando a pensar o que seriam as obras deste período, afinal. Em entrevista, a artista diz perceber uma ternura nas figuras, algo que seria atenuante da pobreza e se colocaria contra o sofrimento e a escuridão que naturalmente fazem parte da gravura militante e expressionista. Para Katz, a xilogravura carrega algo muito caro ao expressionismo. Analisando esse pensamento, percebo uma facilidade da xilogravura em trazer esse preto no branco, algo muito mais chapado do que pode se apresentar em outras técnicas, assim como a expressão da goiva rasgando os fios de madeira, deixando marcas expressivas e extremamente marcadas. Renina dá conta de criar uma gradação do preto, com a interferência do branco, sulcos muito finos dão essa impressão na estampa e ajudam a atenuar o forte impacto “preto no branco” natural à o que há de técnicas mais primitivas na xilogravura.

Ao sentir que o tema social e a xilogravura se esgotaram em seu trabalho, Katz se voltou para a pintura e se reencontrou com a cor. Esse movimento foi determinante para o que viria posteriormente em seu trabalho: as gravuras coloridas, com destaque para litos, e os experimentos em transparência e em mistura de matrizes. A litografia, gravura em pedra, permitiu uma experimentação que se aproxima do pictórico, trazendo elementos da cor e da transparência, a possibilidade da mancha. O “Passeio Laranja” é um bom exemplo do que se torna caro à Katz por volta da década de 70: todas essas propriedades já citadas, a cor, a transparência, o pictórico, e também a possibilidade de trabalhar com a passagem de sombra pra luz e a oportunidade de brincar com as matrizes. No período em que estava especialmente dedicada à litografia, Renina Katz trabalhava em uma gráfica conjunta fundada por Élsio Mota, estando em constante contato com a prática de ateliê conjunto, o que me parece possível de sensibilizar a atenção especial aos elementos processuais da gravura ao observar não apenas seu processo, mas o de outros artistas, aflorando vontades de natureza experimental e processual.


Jacqueline Aronis
Templo I
2008
Água forte e ponta seca
15cm x 10cm
Coleção da artista





A série “Templo”, de Aronis, gira em torno de um sonho da artista, descrito como a visão de um templo sem paredes, com vista para um horizonte com pequenas árvores azuis. Para a artista, a gravura não é apenas ferramenta para revelar uma visão, mas também um trabalho de revelação da técnica para o artista que a produz. A gravura revela e se faz revelar. Na questão do sonho, Aronis conta em sua tese defendida e publicada em 2009, como a gravura revelou a paisagem do sonho: as árvores eram pequeninas e azuis numa paisagem ampla. Do templo, existem portas, embora não haja paredes. “O olhar abarca todo o espaço. A porta é um limiar entre a paisagem como exterior e a contemplação como interior”.

“Templo I” coloca o espectador como alguém presente não apenas na visão da obra, mas no sonho que ela pretende descrever: um arco na parte inferior da estampa, o primeiro plano, coloca o espectador como alguém que está do lado de dentro do templo, observando o segundo plano, as árvores, gravadas em gestos livres com a ponta seca e com delicados traços que trazem a tinta em quantidade e intensidade menor, como que ao fundo da copa, representando, talvez, o azul da paisagem do sonho. Com este trabalho, Aronis traz para o campo da representação de memória um gênero que é mais familiarizado com o desenho de observação: a paisagem.

Embora se tratem de experiências particulares, tanto o sonho, quanto o ato de gravar, quanto a paisagem descrita, a estampa revela algo próprio da arte: como as experiências não são tão particulares quanto podem parecer. Não seriam, afinal, nossas experiências reveladoras de algo que está em todos nós, como seres humanos? Algo compartilhado.


Evandro Carlos Jardim
Rio Pinheiros / Figuras da Margem
1975
Água Forte e água tinta
Coleção do artista

Na obra “Rio Pinheiros / Figuras da Margem”, é possível refletir sobre aspectos do pensamento artístico de Jardim que foram comentados anteriormente. Começando pelo tema da obra, vemos o retrato de uma xícara, um pires e uma colher – duplicados, mas essa duplicação não se dá por completo. Parece impossível afirmar que existem duas xícaras, dois pires e duas colheres quando apenas um de cada se mostra claro na estampa. É a forma de Jardim refletir sobre a atmosfera destes objetos. A observação se faz presente na escolha do tema, mas o artista se permite indagar-se sobre estes, questionar a realidade visível no mundo real e fazer especulação sobre a tradução visual, a linguagem que usa para explicar e tentar compreender o objeto que está à sua frente. É aparente o estudo da realidade material: há a presença do negro no branco, mostrando um estudo sobre a luz no objeto e na atmosfera; entretanto, Evandro não se contenta apenas com esta realidade material, assim como não parece se contentar com a idéia de buscar entender apenas o não visível/imaterial. É como se ambos os assuntos se complementassem e fosse necessário olhar para sua produção de tal maneira: uma busca pela compreensão do que está e do que não está.

REFERÊNCIAS (Válidas para todas as partes do texto)

ABRAMO, Radhá. Renina Katz e sua arte. Estud. av., São Paulo, v. 17, n. 49, p. 287-302, Dec. 2003 . Disponível em: . acesso em: 24 de Abr. 2020. https://doi.org/10.1590/S0103-40142003000300017.

ARONIS, Jacqueline. Matéria gráfica: idéia e imagem. São Paulo: [s/n], 2009. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, Escola de Comunicação e Artes. Orientador: Evandro Carlos Jardim. Disponível em: < https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27159/tde-13072009-185747/publico/tesejacquelinearonis.pdf>. Acesso em: 24 de Abr. 2020.

FAVELA . In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: . Acesso em: 23 de Abr. 2020. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7

JACQUELINE Aronis. In: Blombô. São Paulo. Disponível em: . Acesso em: 24 de Abr. 2020.

PASSEIO Laranja. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: . Acesso em: 23 de Abr. 2020. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7

RENINA Katz. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: . Acesso em: 23 de Abr. 2020. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7

RIO Pinheiros / Figuras da margem. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: . Acesso em: 24 de Abr. 2020. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7