28 de outubro de 2018

Passeio pelo acervo do MASP

27/10/2018. Visito o acervo do Masp pela primeira vez, beirando meus 21 anos. Paulista criada em São Paulo, já tinha visitado o Masp algumas (poucas) vezes, duas ou três a passeio e algumas outras a excursão escolar. Mas o acervo, com os cavaletes de Lina Bo Bardi, visitei apenas em 2018, dois dias antes da eleição de Jair Bolsonaro e em meio a uma Avenida Paulista caótica, dividida entre manifestantes a favor de um retrocesso, dentro de seus carros com adesivos pró-17 e militantes do movimento #EleNão lutando contra o tempo pra virar votos.

Essa é uma postagem sobre arte. Esse é um blog sobre arte. Mas firmo minha posição política. A arte é lida de diferentes maneiras e artista escolhe o que quer dizer com seu trabalho, mas acredito que o produto artístico e o artista sempre têm uma posição política na sociedade, assim como cada elemento da socidade. A arte é sempre política. E pode ser resistência.

Inaugurado em 1968, uma das marcas do museu flutuante é a fachada transparente de vidro, cristalinos como os cavaletes. Uma resposta de Lina ao golpe de 1964 - o ano que ela projetou essa parte do museu. Um sinal de transparência aos esforços e força do povo

Reprodução.

Ocorre nesse ano de 2018 um intercâmbio entre o Tate Museum e o MASP, parte da mostra permanente Acervo em Transformação. Na mostra, o acervo do MASP recebe visitas internacionais, o que me deu a oportunidade de ver obras de Bacon, Matisse e Modigliani. 

Reprodução
Escrevo em um momento de angústia. Agora é meia noite do dia 29/10. Já é meu aniversário. Meu presente de grego é a eleição de uma vívida lembrança do regime instaurado em 64, quando o projeto transparente de Lina foi idealizado. Lembrança vívida não em minha memória individual, mas vívida em minha consciência como brasileira, presente em nossa memória coletiva, mas talvez não tão vívida para todos.

Vi Lina, Volpi, Van Gogh, Rembrandt. Ao entrar no salão, dei de cara com Rafael, mas o cavalete de cristal me permitia ver o que tinha mais à frente: Monet, Renoir e sei lá mais o que. Olhava para o que estava em minha frente já pensando adiante, ansiando em ver Degas, Volpi e Portinari. Olhar sempre pra frente. Olhar sempre adiante, que o melhor há de estar por vir.

No MASP, as obras estão expostas enfileiradas e em ordem cronológica.  Você está sempre olhando pra frente, em todos os sentidos da palavra. Que agora eu durma e passe os anos com a esperança que o MASP me trouxe. Olhando para frente, sempre avante. A arte resiste, ensina a andar pra frente e se coloca como agente ativo.

Reprodução

Desde meus 16 anos sonho em estudar arte, mas desde meus 16 eu digo que museu é chato, embora necessário. Dizia que museu não é passeio, que museu é pra estudar. Talvez por isso sempre escolhi ver as mostras do MASP, e não o acervo. Não quero ser levada a mal, acervos são incríveis, mas são exaustivos, abordam diferentes temas e diferentes períodos. Você precisa ir direcionado ou voltar diversas vezes pra sentir que saiu do museu com uma nova carga, um novo pensamento, se não, as imagens entram e saem, as ideias passeiam pela sua cabeça e você nem percebe. Entretanto, sinto que escolhi o dia certo pra conhecer e aprender com o Masp. O dia pra aprender que a gente tem de, sempre, olhar para as coisas com o máximo de transparência que a gente puder, e talvez isso traga uma pontinha de esperança.

Eis um texto com um olhar romântico sobre arte - um olhar que eu sempre acho irritante sobre a área que escolhi pra minha vida. Mas é mais do que isso. Lina me lembrou, mais do que oportunamente, que precisamos ter esperança.

Em 19 de setembro de 2018, no período de campanha eleitoral, o caderno Ilustrada da Folha de São Paulo perguntou aos presideciáveis qual obra de arte mais os marcou. Jair Bolsonaro foi um dos poucos que não respondeu à pergunta.

Força para a comunidade artística.
Força para todos nós. brasileiros.
A arte resiste.

24 de outubro de 2018

A Arte de Escrever - Arthur Schopenhauer

A Arte de Escrever é uma organização de escritos de Schopenhauer em Parega e Paralipomena (1851). Os ensaios publicados em 1851 refletem sobre o mundo em geral, sem um eixo central. A edição organizada por Pedro Süssekind e publicada pela L&PM, por sua vez, se concentra nos ensaios que tangem à escrita de alguma maneira, da pré concepção (a erudição e o ato de pensar) a concepção (escrita, estilo, leitura, livros) e a linguagem.

Os ensaios de Schopenhauer, sempre coerentes e ácidos, servem como reflexão para o que vai além da erudição. O filósofo cria questionamentos sobre o pensar de linguagens em geral e eu, como estudante de artes visuais, tentei trazer o debate para a linguagem visuale para o estudo da história e teoria da arte.

Sobre a erudição e os eruditos

Nos primeiros parágrafos, Schopenhauer se dedicada a criticar a erudição pomposa, pautada em muitas citações, nomes e no uso da ciência como meio de conseguir prestígio, o que faria com que esta se tornasse menos pura, menos sedenta pelo conhecimento do objeto estudado. Schopenhauher critica os que leem demais (trop), a ponto de embrutecerem suas ideias em ideias já cristalizadas. Critica eruditos que têm a ciência como adorno, como vontade de parecer, escrever, ensinar - para ele, o mais puro da ciência é o conhecer e a paixão por isso.
Os nove primeiros parágrafos que se dedicam a isso podem ser comparados aos artistas academicistas e galeristas, preocupados em citarem artistas consagrados não por paixão ao que eles fizeram, mas pelo prestígio e pela pompa. Esse paralelo com é a arte de nicho, a arte que fecha os olhos para manifestações artísticas diversas ao redor do globo e enxerga o diferente como exotismo. O exotismo traz uma ideia de "normal" no outro gume da faca.
É claro que a crítica de Schopenhauer parece, como sempre, muito amargurada - a assim pôe-se a parecer também meu paralelo.

No décimo parágrafo, Schopenhauer cria um antagonismo entre professores e estudiosos independentes. Para ele, o professor tem vantagem em reconhecimento por parte de seus contemporâneos, mas acaba preso à ideias consolidadas de estudiosos passados, não libertando sua mente e expandindo suas ideias. O estudioso independente, por sua vez, está fadado a passar sua vida na obscuridade, mas por não ter compromisso com acadêmicos do passado ou do presente, tem a liberdade para compreender à sua maneira a natureza humana e poderá ser reconhecido na posteridade, pois tem um ócio e uma independência necessários para esse reconhecimento. Nesse parágrafo, o paralelo com arte a ser traçado é com duas imagens de artistas: aquele preso à ideias pré concebidas de arte e que trabalha com o consagrado e aquele que faz sua pesquisa no mundo, para o mundo e sobre o mundo. A crítica de Schopenhauer faz pensar sobre a pesquisa sobre a natureza humana (filosófica ou artística) como uma pesquisa de observação do mundo, além dos estudos já consagrados. Na arte, essa ideia se mostra no olhar para o mundo e retrata-lo a partir de observação empírica.

Nos parágrafos 12 e 13, Schopenhauer se dedica a criticar o declínio das línguas antigas no meio erudito. Para ele, isso marca a decadência da erudição, a perca da pureza. Ele sugere um estudo aprofundado das línguas antigas a partir do ginásio e a obrigatoriedade em escrever usando-as. Aqui é possível traçar um paralelo ao academicismo e aos que veem a necessidade do uso de técnicas consolidadas. Mais do que isso: Parega e Paraliponema foi publicado em 1851 - mais ou menos perto das vanguardas artísticas, que logo criticariam a arte engessada em técnicas consolidadas. É claro que não sugiro que tais técnicas sejam tão passíveis de uso como o latim nos dias de hoje - as técnicas não foram criadas, mas descobertas como uma maneira de ler e escrever através da linguagem visual, de maneira a capturar o olhar do espectador. Entretanto, é interessante olhar para a crítica de Schopenhauer de maneira inversa - a possibilidade de se criar uma obra de arte mesmo sem o uso de técnicas tão importantes, assim como é possível (diferentemente do que defende o filósofo) escrever e pensar filosofia sem o uso do latim. A grandeza do pensamento filósofico está na ideia e na reflexão do mundo natural, enquanto a beleza de um quadro está em sua potência visual, independente do uso das técnicas..

Pensar por si mesmo

Nos quinze parágrafos dessa seção, Schopenhauer se inclina a criticar a leitura como ocupação principal quando se é erudito. Para ele, a leitura tem papel fundamental de libertar e ocupar a mente vazia, mas não deve tomar muito tempo e nem muito espaço no pensamento de filósofo. Nesses parágrafos, Schopenhauer expõe sua opinião sobre a leitura como leitura dos pensamentos alheios - necessária quando sua fonte seca, mas é mais importante manter sua fonte cheia com questões do mundo que o cerca na vida real, não nos livros. Nesse ponto, a erudição seria um eterno repetir op que já se foi dito. Aqui ele valoriza a clareza, o fluxo e o pensamento livre diante das questões humanas e naturais. É claro que a leitura se faz necessária - é enriquecedor observar o que foi pensado antes de você -, mas isso se estende até o momento que te motiva, apenas. Depois disso, é encher com caraminholas uma cabeça que precisa pensar por si própria. Na arte, as coisas se dão da mesma maneira - conhecer a história para ver o que já foi feito e o que pode ser feito a partir daí, não para reprodução desnecessária e desenfreada. Toda linguagem se propõe questões ao longo do tempo, e o filosofar e fazer arte devem estar a disposição de responder as questões propostas e fazer mais perguntas. É impossível responder perguntas com respostas do passado. É necessário caminhar - e pensar - para frente e olhando para os lados, para o mundo, não para trás.

Sobre a escrita e o estilo

Em A Arte de Escrever, Schopenhauer está sempre criticando a erudição como fazer pomposo, mecânico e vazio. Ao ensaiar sobre a escrita e o estilo, nada muda. Sua crítica começa diferenciando autores que escrevem por escrever e os que escrevem em função do assunto e, posteriormente, ele classifica o pensar dos autores em pensar antes de escrever, pensar durante o escrever e escrever sem pensar. Fica claro que para ele o escrever está em função do pensar - só deve ser escrito o que foi pensado e lapidado antes de ser posto em palavras, sem prolixidade e pompa no estilo. Para ele, há uma lacuna entre escritores que o fazem pela profissão e os que o fazem por honra ao seu pensar.
Do interesse para a arte, é curioso o que diz Schopenhauer no terceiro parágrafo, quando delimita a diferença entre forma e matéria e critica a escrita voltada para a forma quando, para ele, a matéria deve ser foco na escrita. É curioso, pois nas artes visuais, a forma tem tanta importância quanto a matéria, se não mais. Nas artes visuais, a forma de se falar, de se preencher a suporte, de usar o material, de esculpir a matéria... Tudo isso é, no final, sobre a potência visual, a maneira de comunicar. E tudo isso é a forma, fazendo um paralelo ao Schopenhauer. Nas artes visuais, a mensagem mais importante é a mensagem visual - e ela vem com a forma.
"Diga o que você tem que dizer como uma pessoa deste mundo". A citação de Falstaff destacada por Schopenhauer resume muito bem sua fala sobre estilo: abomina a pompa, a cópia de estilo e a prolixidade, incentivando a objetividade e incentivando o que se tem a dizer em vantagem do estilo. É um trabalho engenhoso refletir sobre a aplicabilidade desse pensamento nas artes visuais, uma vez que estilo - não como cacoete, mas como forma - é demasiadamente importante para a leitura visual. Um viés de interpretação é perceber como estilo pode minar um artista que se prende a um trejeito estilístico e perde a habilidade de entrar em contato com outras discussões, outros conteúdos e outras motivações artísticas. O estilo, como crítica Schopenhauer, torna-se um problema na arte quando deixa de ser uma ferramenta para se dizer algo e torna-se um vício de linguagem.

"A verdade fica mais bonita nua, e a impressão que ela causa é mais profunda quanto mais simples sua expressão. [...] Tudo o que é dispensável tem efeito desvantajoso. A lei da simplicidade e da ingenuidade, já que essas qualidades combinam com o que há de mais sublime, vale para todas as belas artes."

Mais adiante, Schopenhauer fala sobre a economia de palavras, criticando-as. Para ele, não é que pouco deve ser dito, mas sim o suficiente. Ele abomina a economia que mata a obra e a matéria. A concisão não deve ser o sacrifício de um ponto de um pensamento. Seguindo pelo pensamento do uso da linguagem, Schopenhauer reflete sobre a gramática, tendo a como obra de arte. Nesse momento, entra em transe com seu deleite sobre o estudo e a classificação da língua, colocando-o como ferramente necessária para organização do pensamento e da expressão humana. Ora, e não é o mesmo nas artes visuais? Embora Schopenhauer seja azucrinhante e ríspido em seus escritos, a reflexão da gramática de uma linguagem traz a ruminação sobre esses estudos que facilitam a expressão e libertam o dizer e o desenhar (disegno). Para mim, é um ponto cativante dos ensaios desse livro: entender a gramática não como inimiga ou como regra a ser seguida, mas como estudo libertador.

Sobre a leitura e os livros

Uma reflexão sobre a qual Schopenhauer vai e volta é a ideia da leitura como ler o pensamento dos outros e o perigo de ficar preso nesse ciclo. Essa meditação me fez pensar sobre a diferença da leitura visual e da leitura literária. Na leitura literária, o leitor está diretamente ligado ao pensamento do autor, está mais refém do raciocínio de quem escreve e está mais passível a reproduzir pensamentos do escritor. Na linguagem visual, entretanto, o trabalho do artista é sempre instigador. É claro que há um recorte, assim como há na escrita. Mas as coisas são menos óbvias na linguagem visual - o espectador é sempre instigado a conversar com a obra para tentar internaliza-la e trazer um significado mundano para uma obra que está numa linguagem difícil de se inserir, de maneira prática, no dia a dia das pessoas.

Ainda na reflexão de ler escritos dos outros, Schopenhauer destaca a importância da ruminação de ideias - que pode ser minada com a leitura desenfreada e com o excesso de informação erudita. Nas artes, isso se aplica na ideia de ruminar ideias do mundo além das artes, além do academicismo. Para Schopenhauer, a leitura de autores com determinadas qualidades não invoca uma nova no leitor mas pode despertar algo latente. E se não tem nada latente, apenas o mundo pode plantar uma semente - o trabalho da leitura será o de despertar, apenas.

Sobre a linguagem e as palavras

"A voz dos animais serve apenas para unicamente para expressar a vontade, em suas excitações e movimentos, mas a voz humana também serve para expressar o conhecimento."

Aqui parece ser o momento mais difícil de traçar paralelos entre a linguagem escrita e a linguagem visual. Entretanto, os parágrafos desse tópico são estritamente ligados ao pensar sobre a linguagem e, sendo assim, também sobre a linguagem escrita. Schopenhauer começa trazendo uma reflexão acerca do desenvolvimento da linguagem, levantando a hipótese da linguagem como uma semente que cresce e se desenvolve de acordo com suas necessidades, sempre se aperfeiçoando.

No terceiro parágrafo, Schopenhauer ensaia sobre a unicidade de cada língua e como o aprender diferentes línguas enriquece a mente humana. Esse ponto é crucial para entender a arte e a linguagem visual como uma linguagem rica, singular e enriquecedora do espírito. Para explicar seu ponto (tratando de línguas estrangeiras), Schopenhauer discorre sobre a unicidade que ocorre em diferentes línguas: como peculiaridades em palavras, adjetivos, substantivos, prefixos, morfemas, fonemas, entre outras unidades linguísticas, fazem com que casa língua enriqueça o espírito do estudioso. Ora, e é claro que isso se aplica às artes visuais, em suas diferentes manifestações. E é necessário entender isso para não cair na vertigem de comparar diferentes obras de linguagens diferentes com algum tipo de juízo valor. Cada obra merece ser lida à sua maneira.

Ao falar sobre linguagem, Schopenhauer se dedica a criticar a tradução como um desfavor ao escrito original. Mesmo que ele tenha seus devidos pontos, cabem discordâncias, principalmente no mundo pós moderno globalizado. Mas o importante é perceber como a linguagem visual - o mais puramente visual, mais verdade isso se torna - não precisa de tradução para enriquecer integralmente um espírito. E isso é, decerto, uma das coisas mais místicas que envolve  o ver, o fazer artístico e a apreciação de arte. Mesmo que a linguagem visual também conte com conceitos únicos a cada unidade (na linguagem falada e escrita, isso se aplica a palavras), nada é necessário de se traduzir.

Mira Schendel, Alle, 1965

"Há duas histórias: a política e a da literatura e da arte. A primeira é a história da vontade, a segunda, do intelecto. É por isso que a primeira geralmente é angustiante: medo, necessidade, engano e assassinatos horríveis em massa. A outra, em contrapartida, é agradável e jovial, assim como o intelecto isolado, mesmo quando descreve erros e descaminhos."